domingo, 6 de setembro de 2020

 



      


O encontro de Paulo Freire com Xaquiamuni Buda

Texto de Monja Heishin

 

Entre duas árvores, na Floresta dos Educadores, estavam Xaquiamuni Buda e Paulo Freire, no tempo, além tempo, em grande intimidade, compartilhando sabedoria.

As suas vozes, tranquilas, eram interrompidas por alguns momentos por sorrisos de contentamento.

Os discípulos de Buda e de Freire ficaram em plenitude ao observar o encontro e, atentos, ouviam silenciosamente.

Estavam juntos dois mestres, professores que, por meio de suas experiências pessoais, resultado de grande determinação por compreender o sentido da vida, caminharam para além dos limites de uma mente passiva, telespectadora da vida, para uma mente de sabedoria, desperta e transformadora.

Freire, afagando a sua longa barba branca, tecia uma reflexão silenciosa. Levantando os olhos disse tranquilamente a Buda:

- Amigo, o que me motivou como educador foi a clareza da urgência de uma pedagogia que promovesse o resgate da dignidade humana, assim, a transformação pessoal, social e política, e não que reproduzisse modelos de pensamento de classes dominantes promotoras de exclusões e de desigualdades sociais.

O processo de alfabetização de adultos pelo qual me dediquei não consistia em apenas ensinar a ler ou escrever palavras, mas a promover, por meio de palavras do cotidiano e da realidade desses alunos, reflexões. Os alunos exercitavam a “leitura” de suas vidas e compreendiam a sua própria história. E, a partir dessa compreensão habilidades se desenvolviam para transformá-la.

Buda, com seu olhar atento e brilhante sorri e diz:

Freire, a mente iluminada, desperta, é aquela que acessa a realidade de todas as coisas, aquela que vê em profundidade. Somos toda a vida da terra, como uma teia, intersomos com tudo o que existe.

Conhecer a si mesmo e compreender essa realidade permite desenvolver uma observação clara de quem somos. Conhecer a si mesmo é observar o funcionamento da mente. Identificar apegos e aversões; identificar as ilusões que se tornaram verdades assim, delusões que levam ao sofrimento, a insatisfações. Assim, essa leitura da realidade que você provocava em seus alunos é o processo natural do despertar da mente. Mas, o que move o olhar em profundidade é a Compaixão, isto é, a profunda atenção às necessidades de todos os seres vivos. E, aquele que sofre e aquele que promove sofrimento são igualmente vítimas, em grande parte, de suas mentes deludidas.

Caríssimo amigo, complementa Freire: sim, desenvolvi trabalhos destacando para a importância do ato de “ler” o mundo.  E, nessa leitura, promover a percepção de que a educação dominante promove exclusões e injustiças, portanto sofrimento, fortalecendo intolerâncias. Sempre tratei da relação opressor e oprimido e que quando o oprimido sai da condição de opressão, reproduz o modelo e torna-se opressor. Compreendo, amigo Buda, que ao olharmos em profundidade os modelos que promovem sofrimento, esse sofrimento é de ambos os lados. É necessário atuarmos para estabelecer conexões entre situações tensas de conflito para transformá-las. A educação deve contribuir para o entendimento do mundo e a preparar a todos para atuar nele, mas ainda é necessário conectar a educação a realidades cada vez mais amplas, à realidade das necessidades humanas. A diversidade é a riqueza da vida.

Buda complementa com especial energia:

- Olhar em profundidade, olhar de longo alcance, que “vê” os sons, os lamentos do mundo, de todas as formas de vida, Freire. Intersomos com a tudo o que existe. Somos resultado de infinitas causas e condições. E, as nossas escolhas e respostas interferem na teia da vida.  Tudo está em transformação, nada é fixo, inclusive modelos e culturas.

Tenho dito a todos os meus discípulos de que a insatisfação existe e que há causas que a promovem. É necessário conhecer essas causas e por meio dos ensinamentos é possível a cessação das insatisfações. Como você, Freire, apresento aos meus discípulos meios claros para esse esclarecimento.

Amigo Freire, diz Xaquiamuni Buda, caminhemos um pouco mais pela Floresta de odores perfumados de cedros, jacarandás e jatobás... venha tomar um chá comigo.

Sim, amigo, vamos. O chão é firme e as folhas o amaciam, os pássaros sobrevoam sobre os galhos frondosos. Os seus e meus alunos cobrem toda a planície. As suas escolhas beneficiarão inúmeros seres.

Assim, Xaquiamuni Buda e Paulo Freire seguiram para dentro da Floresta dos Educadores, abrigados pelo sol do entardecer...


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